Elementos e lembranças de garoto
Quando
eu era garoto, naquele tempo,
quando
andava na escola primária
que
era a primeira
onde
se aprendiam as letras todas e muitas palavras
e
os algarismos e os números, incluindo os romanos,
e
as tabuadas decoradas e as contas certinhas
com
que se resolviam os problemas difíceis
de
áreas de terrenos e de volumes
e
do custo das coisas
(apesar
de por ali ser pouco o dinheiro que havia)
e
se aprendia muita história e muita geografia
e
muitas outras coisas
para
além de muito passo da vida da gente
pelo
mundo dentro e fora
que
muita gente dali nunca viveria
como
nunca andaria de comboio
nem
de longe olharia o mar,
mesmo
que fosse com muito cuidado
(havia
um Adamastor, dizia-se,
sem
saber o que seria)
e
menos esperança havia de algum dia
a
gente agarrar o mar
(como
seria o encanto do diabo
daquele
malvado mar
que
a uns homens matava
e
a outros elevava a heróis,
faróis
em ruas e praças de cidades
em
acções de graças de outros homens?...),
naquele
tempo, dizia eu,
garoto
nordestino sem mar,
de
uma terra em que o inverno vinha cedo
e
sempre andava por ali olhando a gente
e
cedo se acendia a lareira e a candeia de luz fraca
(sim,
foi daí que veio o meu fascínio pela luz
docemente
incendiado pela chama do pensamento)
e
se ouvia ao lume a fala dos homens mais velhos,
sérios,
(e
estou agora a lembrar-me
dos
seus velhos sapatos molhados)
a
falar de cartas de chamada para o Brasil
(creio
que era chamada aquela palavra usada
mas
não percebia quem de lá chamava),
e
eu não sabia onde era o Brasil e o que lá haveria,
talvez
fosse apenas um fim-do-mundo
ou
talvez um paraíso sem pecado
porque
não se ouvia que quem fosse
um
dia depois de lá viesse
(foi
para o Brasil…, era só o que se dizia
e
era depois aquele silêncio que ficava,
os
olhos baixos fitando o lume,
mexendo
talvez nas brasas
para
aquecer a alma que arrefecia…),
naquele
tempo, dizia eu,
voltando
à minha escola primária
de
entrada de respeito em cantaria,
a
primeira de todas onde a gente
se
faz gente ou não se faz,
naquele
tempo,
uma
redacção à luz da candeia
que
a senhora Professora pedia
sobre
os elementos da vida
podia
muito bem ser assim
em
letra muito certinha,
sim,
como
cedo se aprendia:
“Os elementos:
Os elementos essenciais (ou
fundamentais) da nossa vida aqui são os seguintes: a terra, as vacas, o arado e
os homens.
A terra é muito nossa amiga porque nos
dá o pão e o resto, mas precisa de ser trabalhada e às vezes custa muito. Custa
mais no Inverno e no Verão quando faz muito frio ou muito calor.
Há também os bois e os machos ou as
mulas e também os burros. Burros há por aqui muitos. Os burros zurram muito!
Há também a charrua onde se põe a relha
para lavrar a terra.
Ainda há o carro das vacas ou de outros
animais para levar as coisas como, por exemplo, o trigo segado no Verão e a
lenha para o lume no Inverno.
O céu às vezes está muito escuro e
chove muito.
Há também trovoadas muito grandes. A
gente tem medo e reza a Santa Bárbara. Eu tenho medo das trovoadas! Já tem
morrido gente!
Quando não chove durante muito tempo, o
senhor Padre e a gente toda fazem uma novena na aldeia. Lembro-me de uma.
Os homens levam merenda quando vão para
o campo porque o trabalho dá fome e é preciso comer para não morrer.
À noite, quando os homens chegam, as
mulheres já têm o caldo feito e a gente come depois de acomodar os animais que
também precisam de comer.
Eu gosto muito da terra porque nos dá
tudo o que a gente aqui precisa!”.
Nordestes
que o mar
e
a terra ligaram,
terra
e mar,
gostos
que ficaram,
nordestes,
que
nos fizestes!...
2014-01-30
in José Rodrigues Dias, Poemas daquém e dalém-mar, 178 pp, 2016.
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Jrd, 2021-05-08
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