sábado, 8 de maio de 2021

Elementos e lembranças de garoto

 


(Hoje, a propósito do Dia Internacional do Burro).


Elementos e lembranças de garoto

 

 

Quando eu era garoto, naquele tempo,

quando andava na escola primária

que era a primeira

onde se aprendiam as letras todas e muitas palavras

e os algarismos e os números, incluindo os romanos,

e as tabuadas decoradas e as contas certinhas

com que se resolviam os problemas difíceis

de áreas de terrenos e de volumes

e do custo das coisas

(apesar de por ali ser pouco o dinheiro que havia)

e se aprendia muita história e muita geografia

e muitas outras coisas

para além de muito passo da vida da gente 

pelo mundo dentro e fora

que muita gente dali nunca viveria

como nunca andaria de comboio

nem de longe olharia o mar,

mesmo que fosse com muito cuidado

(havia um Adamastor, dizia-se,

sem saber o que seria)

e menos esperança havia de algum dia

a gente agarrar o mar

(como seria o encanto do diabo

daquele malvado mar

que a uns homens matava

e a outros elevava a heróis,

faróis em ruas e praças de cidades

em acções de graças de outros homens?...),

 

naquele tempo, dizia eu,

garoto nordestino sem mar,

de uma terra em que o inverno vinha cedo

e sempre andava por ali olhando a gente

e cedo se acendia a lareira e a candeia de luz fraca

(sim, foi daí que veio o meu fascínio pela luz

docemente incendiado pela chama do pensamento)

e se ouvia ao lume a fala dos homens mais velhos,

sérios,

(e estou agora a lembrar-me

dos seus velhos sapatos molhados)

a falar de cartas de chamada para o Brasil

(creio que era chamada aquela palavra usada

mas não percebia quem de lá chamava),

e eu não sabia onde era o Brasil e o que lá haveria,

talvez fosse apenas um fim-do-mundo

ou talvez um paraíso sem pecado

porque não se ouvia que quem fosse

um dia depois de lá viesse

(foi para o Brasil…, era só o que se dizia

e era depois aquele silêncio que ficava,

os olhos baixos fitando o lume,

mexendo talvez nas brasas

para aquecer a alma que arrefecia…),


naquele tempo, dizia eu,

voltando à minha escola primária

de entrada de respeito em cantaria,

a primeira de todas onde a gente

se faz gente ou não se faz,

 

naquele tempo,

uma redacção à luz da candeia

que a senhora Professora pedia

sobre os elementos da vida

podia muito bem ser assim

em letra muito certinha,

sim,

como cedo se aprendia:

 

“Os elementos:

 

Os elementos essenciais (ou fundamentais) da nossa vida aqui são os seguintes: a terra, as vacas, o arado e os homens.

A terra é muito nossa amiga porque nos dá o pão e o resto, mas precisa de ser trabalhada e às vezes custa muito. Custa mais no Inverno e no Verão quando faz muito frio ou muito calor.

Há também os bois e os machos ou as mulas e também os burros. Burros há por aqui muitos. Os burros zurram muito!

Há também a charrua onde se põe a relha para lavrar a terra.

Ainda há o carro das vacas ou de outros animais para levar as coisas como, por exemplo, o trigo segado no Verão e a lenha para o lume no Inverno.

O céu às vezes está muito escuro e chove muito.

Há também trovoadas muito grandes. A gente tem medo e reza a Santa Bárbara. Eu tenho medo das trovoadas! Já tem morrido gente!

 

Quando não chove durante muito tempo, o senhor Padre e a gente toda fazem uma novena na aldeia. Lembro-me de uma.

Os homens levam merenda quando vão para o campo porque o trabalho dá fome e é preciso comer para não morrer.

À noite, quando os homens chegam, as mulheres já têm o caldo feito e a gente come depois de acomodar os animais que também precisam de comer.

Eu gosto muito da terra porque nos dá tudo o que a gente aqui precisa!”.

 

 

Nordestes que o mar

e a terra ligaram,

 

terra e mar,

gostos que ficaram,

 

nordestes,

que nos fizestes!...

 

2014-01-30


in José Rodrigues Dias, Poemas daquém e dalém-mar178 pp, 2016.

* * *

Jrd, 2021-05-08

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