O mundo na minha escola primária
Eu gostava muito da porta da minha
escola primária: era de cantaria e redonda em cima. Era uma escola só para
meninos; havia outra escola só para meninas. Havia muitos meninos e muitas
meninas. Alguns andavam descalços. Não havia electricidade na terra e não havia
televisão. Telefone havia. Lembro-me do telefone número 4. Havia poucos rádios
e eram grandes, da gente rica. Trabalhavam a pilhas. Quando acabavam as pilhas
ficavam sem saber as horas certas. Mas as horas eram todas boas. Eram as horas
dadas pelo Sol e pela Lua, quando não havia névoas. Quando havia, ou quando
chovia muito, que Deus a dava, não fazia diferença. Um dia nascia depois de
outro dia e o mesmo acontecia com as noites. Eram sempre alternados. Também
havia as horas dadas pela barriga. Essas eram as horas piores, com fome.
Notícias quase não havia em Talhas, nem era preciso. Quando alguém morria tocava o sino. Tocava de maneira diferente consoante o morto era homem ou era mulher. Se o morto era de outra terra, a notícia lá chegava e logo se espalhava.
Era assim o mundo. O mundo estava
todinho ali na minha escola, no saber da senhora professora e no mapa
dependurado por um fio numa parede da sala de aula ao pé do quadro. Um dia
calhou cair com o ponteiro a forçar o Mondego a passar pela terra dos doutores.
“Meninos, poucos podem ser doutores, mas têm que estudar todos muito para serem
homens”, dizia a senhora professora, nós todos em silêncio. Também lá estava na
parede um retrato. Era dum governador, que a gente ali na terra não conhecia
bem, que a gente não precisava. Bastava o senhor regedor. As festas eram sempre
no verão, o Natal era a seguir à consoada e a Páscoa o senhor Padre dizia, logo
a seguir ao Domingo de Ramos. Os ramos eram raminhos de oliveira e era em latim
a missa aos domingos e nos dias-santos. Ao entrar na igreja, os homens tiravam
o chapéu dos domingos e dias-santos. Benziam-se à entrada com a água benta da
pia. As mulheres ficavam na parte de trás da igreja.
Água era a das fontes, que era fresca
mas pouca no verão, e não se podia gastar muita água para lavar as casas para a
festa. E também ficava longe e os cântaros pesavam nos quadris. As necessidades
eram feitas na loja dos animais e no campo, tudo muito natural. Era bom o
campo, com vinhas e oliveiras. As pitas andavam em liberdade na rua. Quando era
o tempo, havia os figos, as alfaces, os pepinos, os feijões, etc. Foi a minha
professora que me ensinou a usar o “etc.”. Ensinava-nos muita coisa a senhora
professora. Também tinha uma régua. A mão era certinha. Erros ninguém tinha.
Gostei muito da minha escola e da minha
professora. Ensinou-me a ler, a contar e a escrever. As contas e os problemas
eram muito difíceis. E ensinou-me também a aprender. Tive sorte com a minha
escola e com a minha professora. Por acaso eram duas professoras. Gostei das
duas. Lembro-me delas.
Um dia quis ter uma escola igual à
minha. Hoje vendem as escolas.
Hoje já não há meninos nem meninas,
mesmo todos juntos a brincar juntinhos aos crescidinhos. Nem escolas. Há outras
réguas. Também não há gente. Há lixo. Dizem que é da cidade. Tanto campo que
havia! Ah, lembro-me também que a senhora professora dizia que havia uma
província toda planinha que era o celeiro de Portugal, cheiinha de trigo. Mas
dizia a senhora professora também que lá havia fome. Isso eu nunca entendi bem.
Mas ela sabia.
Parece que agora quase tudinho mudou.
Do Portugal do mapa só vejo um risco grosso junto ao mar. Sem barcos. Ou com
outros barcos. Desapareceu quase todinho. Deve ser da minha vista já cansada. É
assim a vida.
Só vejo uma coisa que se mantém: o
mundo, esse, continua dependurado por um fio. Por outro fio. Cairá?
in José Rodrigues Dias, Braços Abraçados, 82 pp, 2010.
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Jrd, 2021-05-09
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