Butelo de poesia
Prato
com o butelo,
farto…
Falo só do butelo,
nem sequer das casulas falo
para não falar aqui, agora, de
outras coisas
e de outras estações do ano…
O butelo…
Prosaicamente falando, ossos
aproveitados
divinamente condimentados naqueles
molhos
daquele tempo lá longe, longe,
de menino,
já longe, hoje ressuscitados…
Ossos com uns restos de carne,
restos de carne em ossos de
porco
em Inverno morto
para o pão do ano inteiro
não ser tão seco e duro, de
pobre,
tão seco,
duro,
de pobre…
O butelo…
Sabor, odor, magia
de tempos antigos de
sobrevivência
de homens e mulheres de
singela sabedoria
burilada em rituais
de lume e fumo
e morte e vida
noite e dia
quase informais,
sem mestres de cerimónia
que mestres, mestres mesmo,
ali,
talvez só a morte e a vida…
Lembro-me tão bem daquelas
noites
à luz triste de uma candeia
cheia de sombras e de fantasia
quando vinha uma Lua cheia
e ela entre névoas logo se
escondia…
O butelo…
Lembro-me do espeto rojo de ferro
furando quase brutalmente o butelo
e o pequeno buraco logo
pingando…
Um dreno, como hoje a gente
diria,
que o calor e o fumo
do lume que pacientemente
ardia
cada um a seu jeito o
desinfectaria,
o calor e o fumo, e aquela
ancestral sabedoria,
e melhor o butelo então se
curaria,
cada pinga caindo, caindo,
caindo sem pressa, a gente não
fugia,
que o tempo ali não urgia…
No butelo também a poesia
ainda que triste
daqueles invernos de chuva
e de gelos e de neves,
os pardais perdidos, pastores
de frio encolhidos,
sinais ainda de fome…
Ruas das ribeiradas,
de lama
e estrume da palha,
a palha que enxugava os
caminhos
e com o estrume depois se
adubava a terra,
era uma vida na possível
harmonia,
harmonia que grande era a
miséria
e da gente teria de ser todo o
invento
para o seu pequeno, sóbrio,
sustento…
E a maioria daquela gente não
conhecia
nem uma só letra de escola
e quão bem, olhos fechados,
escrevia e lia
a sua vida e pão
com aquela magia
em cada Inverno,
de ar, água e fogo
os rituais,
de sabedoria a luz…
Densa, em cada butelo
aquela singela, e límpida…,
poesia
dos homens e mulheres…
2013-03-08
in José Rodrigues Dias, Chão, da Terra ao Pão,
Ed. Forinfor, 152 pp, 2017.
Ed. Forinfor, 152 pp, 2017.
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José Rodrigues Dias, 2020-02-22
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