sábado, 22 de fevereiro de 2020

Butelo de poesia




Butelo de poesia


Prato
com o butelo,
farto…

Falo só do butelo,
nem sequer das casulas falo
para não falar aqui, agora, de outras coisas
e de outras estações do ano…

O butelo…
Prosaicamente falando, ossos aproveitados
divinamente condimentados naqueles molhos
daquele tempo lá longe, longe, de menino,
já longe, hoje ressuscitados…
Ossos com uns restos de carne,
restos de carne em ossos de porco
em Inverno morto
para o pão do ano inteiro
não ser tão seco e duro, de pobre,

tão seco,
duro,
de pobre…

O butelo…

Sabor, odor, magia
de tempos antigos de sobrevivência
de homens e mulheres de singela sabedoria
burilada em rituais
de lume e fumo
e morte e vida
noite e dia
quase informais,

sem mestres de cerimónia
que mestres, mestres mesmo, ali,
talvez só a morte e a vida…

Lembro-me tão bem daquelas noites
à luz triste de uma candeia
cheia de sombras e de fantasia
quando vinha uma Lua cheia
e ela entre névoas logo se escondia…

O butelo…

Lembro-me do espeto rojo de ferro
furando quase brutalmente o butelo
e o pequeno buraco logo pingando…

Um dreno, como hoje a gente diria,
que o calor e o fumo
do lume que pacientemente ardia

cada um a seu jeito o desinfectaria,
o calor e o fumo, e aquela ancestral sabedoria,
e melhor o butelo então se curaria,
  
cada pinga caindo, caindo,
caindo sem pressa, a gente não fugia,
que o tempo ali não urgia…

No butelo também a poesia
ainda que triste
daqueles invernos de chuva

e de gelos e de neves,
os pardais perdidos, pastores de frio encolhidos,
sinais ainda de fome…

Ruas das ribeiradas,
de lama
e estrume da palha,

a palha que enxugava os caminhos
e com o estrume depois se adubava a terra,
era uma vida na possível harmonia,

harmonia que grande era a miséria
e da gente teria de ser todo o invento
para o seu pequeno, sóbrio, sustento…

E a maioria daquela gente não conhecia
nem uma só letra de escola
e quão bem, olhos fechados, escrevia e lia

a sua vida e pão
com aquela magia
em cada Inverno,

de ar, água e fogo
os rituais,
de sabedoria a luz…

Densa, em cada butelo
aquela singela, e límpida…, poesia
dos homens e mulheres…

2013-03-08

in José Rodrigues Dias, Chão, da Terra ao Pão
Ed. Forinfor, 152 pp, 2017.

* * *   

José Rodrigues Dias, 2020-02-22

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