quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Elementos e lembranças de garoto




Elementos e lembranças de garoto



Quando eu era garoto, naquele tempo,
quando andava na escola primária
que era a primeira
onde se aprendiam as letras todas e muitas palavras
e os algarismos e os números, incluindo os romanos,
e as tabuadas decoradas e as contas certinhas
com que se resolviam os problemas difíceis
de áreas de terrenos e de volumes
e do custo das coisas
(apesar de por ali ser pouco o dinheiro que havia)
e se aprendia muita história e muita geografia
e muitas outras coisas
para além de muito passo da vida da gente 
pelo mundo dentro e fora
que muita gente dali nunca viveria
como nunca andaria de comboio
nem de longe olharia o mar,
mesmo que fosse com muito cuidado
(havia um Adamastor, dizia-se,
sem saber o que seria)
e menos esperança havia de algum dia
a gente agarrar o mar
(como seria o encanto do diabo
daquele malvado mar
que a uns homens matava
e a outros elevava a heróis,
faróis em ruas e praças de cidades
em acções de graças de outros homens?...),

naquele tempo, dizia eu,
garoto nordestino sem mar,
de uma terra em que o inverno vinha cedo
e sempre andava por ali olhando a gente
e cedo se acendia a lareira e a candeia de luz fraca
(sim, foi daí que veio o meu fascínio pela luz
docemente incendiado pela chama do pensamento)
e se ouvia ao lume a fala dos homens mais velhos,
sérios,
(e estou agora a lembrar-me
dos seus velhos sapatos molhados)
a falar de cartas de chamada para o Brasil
(creio que era chamada aquela palavra usada
mas não percebia quem de lá chamava),
e eu não sabia onde era o Brasil e o que lá haveria,
talvez fosse apenas um fim-do-mundo
ou talvez um paraíso sem pecado
porque não se ouvia que quem fosse
um dia depois de lá viesse
(foi para o Brasil…, era só o que se dizia
e era depois aquele silêncio que ficava,
os olhos baixos fitando o lume,
mexendo talvez nas brasas
para aquecer a alma que arrefecia…),

naquele tempo, dizia eu,
voltando à minha escola primária
de entrada de respeito em cantaria,
a primeira de todas onde a gente
se faz gente ou não se faz,
naquele tempo,
uma redacção à luz da candeia
que a senhora Professora pedia
sobre os elementos da vida
podia muito bem ser assim
em letra muito certinha,
sim,
como cedo se aprendia:

“Os elementos:

Os elementos essenciais (ou fundamentais) da nossa vida aqui são os seguintes: a terra, as vacas, o arado e os homens.
A terra é muito nossa amiga porque nos dá o pão e o resto, mas precisa de ser trabalhada e às vezes custa muito. Custa mais no Inverno e no Verão quando faz muito frio ou muito calor.
Há também os bois e os machos ou as mulas e também os burros. Burros há por aqui muitos. Os burros zurram muito!
Há também a charrua onde se põe a relha para lavrar a terra.
Ainda há o carro das vacas ou de outros animais para levar as coisas como, por exemplo, o trigo segado no Verão e a lenha para o lume no Inverno.
O céu às vezes está muito escuro e chove muito.
Há também trovoadas muito grandes. A gente tem medo e reza a Santa Bárbara. Eu tenho medo das trovoadas! Já tem morrido gente!
Quando não chove durante muito tempo, o senhor Padre e a gente toda fazem uma novena na aldeia. Lembro-me de uma.
Os homens levam merenda quando vão para o campo porque o trabalho dá fome e é preciso comer para não morrer.
À noite, quando os homens chegam, as mulheres já têm o caldo feito e a gente come depois de acomodar os animais que também precisam de comer.
Eu gosto muito da terra porque nos dá tudo o que a gente aqui precisa!”.

Nordestes que o mar
e a terra ligaram,

terra e mar,
gostos que ficaram,

nordestes,
que nos fizestes!...

2014-01-30


In José Rodrigues Dias, Poemas daquém e dalém-mar,
Ed. Forinfor, 178 pp, 2016.


* * *

Jrd, 2020-02-19


Sem comentários:

Enviar um comentário