quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tractor vermelho, quase poesia?




Tractor vermelho, quase poesia?


Mesmo sem saber o que é ser poema

(Poeta, o que é um poema?
E tu, aí, o que é um tractor?),

eu sei que não é poético falar de um tractor,
e logo de um tractor de cor vermelha
(e, pior ainda, sendo meu),
da cor do Sol nascente
quando louro é já o trigo
e se avizinha outro dia quente…

Mas o que dizer de um tractor

que lavra direito a terra que amanha
para ser mãe fecunda
com amor,
amor sem adjectivos,
tout court,

e com os dedos polidos a arranha
como massagem ora leve ora funda
mas sem nunca a querer magoar

como médico ou enfermeiro
em doente sensível que sempre trata
como profissional verdadeiro,

que dizer de um tractor

em terra sem sinais
nem viadutos
nem rotundas,
sem sinais de enganos,
sem esquerdas nem direitas,
sem filas de automóveis sem fim,
gente desesperada
gritando apressada…,
  
que dizer de um tractor, a cor avermelhada,
que lavra direito a terra que com jeito amanha
para ser doce mãe, a mãe fértil abençoada…

E que dizer de um homem pequeno

(eu da vida o reconheço)
com cheiros entranhados
(em dias pelas noites feitos longos)
de números e de fórmulas
e de computadores
à superfície vistos
até ao osso esventrados
e em imagens simples explicados,
e outras coisas mais…,

traços também de gente,
rica, pobre, muita gente…,

quando sobre esse tractor
que firme vai avançando
direito ou largas as curvas,

morno, liquido no radiador
(um pouco do líquido se vai perdendo,
em tudo na vida há perdas),

(como no movimento
sempre vai havendo, pela resistência do outro,
certo amortecimento),

quando sobre esse tractor
o homem direito se levanta inteiro,
ele, de pé com os seus eus,

e com a vista alcança a cidade
nas cúpulas a sul, profanas e divinas,
e sente em chama a liberdade…

E quando o homem
acaricia
a aragem da tarde

e os pássaros
antecipam na terra arada
a ceia cheia

e os coelhos
começam a sair cedo
e observam,

sem medo e sem barreiras,
direitos
sobre suas pernas traseiras,

não será cada traço do tractor,
ainda que de cor vermelha, não será, então,
verso belo de poesia ou quase?

2012-10-08

in José Rodrigues Dias, Chão, da Terra ao Pão, 152 pp, 2017.


* * *   

José Rodrigues Dias, 2020-07-23

Sem comentários:

Enviar um comentário