terça-feira, 9 de junho de 2020

Eu, a enxada e o poema




Eu, a enxada e o poema


Enxada grande,
de outro tempo, de calejar a mão,
assim é a minha,

o sentido cristalinamente puro,
duro
o chão
de onde em suor arranco o pão,

não exactamente o pão feito de grão
mas é como se pão
para a boca fosse
grão a grão
e que sabor a doce
no fim do suor salgado
de tanto e tanto passo meu dado,

este meu pão agora aqui é esta batata
que há uns três meses semeei
e que agora com a enxada
da terra arranquei,

quer dizer, vou arrancando
enquanto com os braços subindo e descendo
este caminho vou andando...

Eu sei, eu sei...,

olha o gajo...,
dizes tu,
olha o gajo...,

eu sei
que tu talvez nunca tenhas visto enterrada
a batata nascida da tua mão,
eu sei,
na terra arada,

eu sei, no chão
em sagrada multiplicação
do pão, eu sei...

E quem sabe, talvez um dia...,
um dia talvez o tempo to traga
e na mão um dia de alegria...

Eu, em silêncio recolhido,
de cada batata semeada
como de palavra lançada
sinto um poema colhido!

2016-06-17

in José Rodrigues Dias, Da semente, 254 pp, 2018.


Jrd, 2020-06-09

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