Miguel
Os dezanove anos
que o Miguel disse ter
Pareciam ser catorze ou quinze. Não mais.
O rosto era
suave, bonito, preto, o olhar calmo,
Talvez de quem
quase nada espera ter ou ver.
O Miguel vendia,
ou tentava vender,
Saquinhos de
caju torrado que disse ser,
Com cuidado e
saber, ele próprio a preparar.
Senti ser
verdade quando um de nós,
Muitos anos
vividos em Moçambique,
Conhecedor,
sobre tal o decidiu questionar.
A clientela, a
quem o Miguel queria
Agora o caju vender,
Para o pão
noutro dia
Poder então
comer,
Era aquele
pequeno grupo que ali aprecia
Aquele Índico
tépido, de muitos tons, em baía,
Envolto, em
muitos verdes, por pequenas elevações,
Como que
protegendo-o, acariciando-o,
Nas suas suaves,
quase esquecidas, ondulações.
O guia era uma
figura bem disposta, curiosa,
De pele preta,
um ventre algo saliente, mediana altura,
Com um português
correcto, com uma inesperada cultura,
Em tons ora
sérios, numa linguagem elegante,
Ora em mesclas
de falar docemente provocante,
Como numa picada
de imprevistos, no mato, sinuosa.
Porém, o guia
era uma figura intrigante.
Aquele de nós, o
de muitos anos de Moçambique,
Conhecendo as
gentes, cedo o notou e muito curioso ficou.
Então,
aproveitando um minuto da sua ausência,
Intrigado,
perguntou, quase afirmando, ao Miguel:
Ouve lá, o guia
é rico?!.
O Miguel, de
rosto suave, preto, bonito,
Na tranquilidade
que todo o tempo do mundo lhe dá,
Naquele mundo
sem fim, de tanta terra e de tanto mar,
Também de tanto
puro ar, ficou perplexo,
Senti-o eu no
seu quase não doce olhar.
Sentindo-se como um encostado à parede,
Hesitando uma fracção de segundo,
Que muito mais não podia ser, respondeu:
Ter trabalho é ter riqueza!
Hábil, evitando o concreto da pergunta,
Protegendo o guia, na cor seu irmão,
Seu conhecido de ontem ou não,
O jovem Miguel, homem feito de menino,
Apanhando castanha, caju torrando,
Vendedor quando comprador tiver,
Respondeu de forma sábia,
Quase cruel, por singela e crua ser,
De quem já muito sabia,
A quem a vida já muito devia,
Com uma infinita certeza:
Ter trabalho é ter riqueza.
in José Rodrigues Dias, Braços Abraçados, Tartaruga Editora, 82 pp, 2010.
Jrd, 2020-06-05
Sem comentários:
Enviar um comentário